Complicações do Uso de Drogas e o Risco de Doenças Ocultas: Uma Abordagem Clínica e Preventiva
Introdução
O consumo de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas, continua sendo um dos grandes desafios da saúde pública mundial. Mais do que os efeitos imediatos no comportamento e no organismo, o uso prolongado ou abusivo de drogas está frequentemente associado ao surgimento, agravamento ou ocultação de outras doenças, muitas vezes silenciosas e não diagnosticadas. Essas condições, conhecidas como doenças ocultas, tornam-se ainda mais perigosas pela dificuldade em identificá-las precocemente. Diante disso, a compreensão da interligação entre o uso de drogas e doenças ocultas é essencial para uma abordagem terapêutica eficaz e humanizada.
1. Efeitos Diretos do Uso de Substâncias
Substâncias como álcool, maconha, cocaína, crack, benzodiazepínicos, alucinógenos, opioides e inalantes agem diretamente no sistema nervoso central, alterando funções cognitivas, emocionais e motoras. A repetição do uso leva a uma série de consequências clínicas e psíquicas, como:
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Comprometimento cognitivo (atenção, memória, julgamento);
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Desregulação emocional (ansiedade, agressividade, impulsividade);
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Queda de rendimento acadêmico e laboral;
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Risco aumentado de acidentes, comportamento suicida e violência doméstica;
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Alterações fisiológicas no fígado, sistema cardiovascular, sistema digestivo e imunológico.
Segundo Volkow et al. (2016), “o uso crônico de substâncias modifica circuitos cerebrais relacionados à motivação, tomada de decisão e autocontrole, perpetuando o ciclo da dependência”.
2. O Que São Doenças Ocultas?
Doenças ocultas são condições clínicas ou psíquicas que não se manifestam de maneira evidente, permanecem sem diagnóstico preciso ou são encobertas por outros sintomas mais chamativos, como os causados pelo uso de drogas. Muitas vezes, o consumo de substâncias serve como um “camuflador” do sofrimento psíquico ou de disfunções físicas já presentes, dificultando a percepção tanto do paciente quanto da equipe clínica.
Essas doenças não diagnosticadas agravam-se com o tempo, pois não são tratadas adequadamente, e podem contribuir para a cronificação do quadro de dependência ou para o surgimento de novas comorbidades.
3. Exemplos de Doenças Ocultas Relacionadas ao Uso de Drogas
a) Transtornos mentais não diagnosticados
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Depressão, transtornos de ansiedade, bipolaridade, esquizofrenia e transtornos de personalidade são frequentemente subdiagnosticados em usuários de drogas, que utilizam a substância como forma de automedicação emocional.
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A dependência, nesses casos, é muitas vezes um sintoma secundário de um sofrimento mental não tratado.
b) Doenças infecciosas
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Hepatite B e C, sífilis, tuberculose e HIV/AIDS são comuns entre usuários de drogas injetáveis ou pessoas expostas a comportamentos sexuais de risco.
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Por vezes, o uso de substâncias dificulta a adesão ao tratamento dessas infecções, que evoluem silenciosamente.
c) Distúrbios metabólicos e cardiovasculares
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Uso crônico de álcool, estimulantes ou sedativos pode agravar ou ocultar quadros como hipertensão, diabetes tipo 2, obesidade, doenças renais e hepáticas, que avançam de forma assintomática nos estágios iniciais.
d) Doenças neurológicas e cognitivas
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Algumas condições como epilepsia parcial, comprometimento neurocognitivo leve, encefalopatias ou demências precoces podem ser confundidas com efeitos das drogas e não serem devidamente investigadas.
e) Transtornos do sono e autoimunes
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Apneia do sono, fibromialgia, lúpus e outras doenças autoimunes muitas vezes não são relatadas por usuários por falta de atenção aos sintomas sutis, sendo erroneamente atribuídas ao consumo.
Segundo a UNODC (2023), “o consumo contínuo de substâncias, especialmente sem acompanhamento médico, está associado à negligência diagnóstica e à subnotificação de doenças sistêmicas e mentais concomitantes”.
4. Abordagem Clínica e Terapêutica Integrada
A identificação precoce de doenças ocultas em usuários de substâncias exige uma abordagem multidisciplinar e investigativa, que vá além do sintoma imediato da dependência. O cuidado clínico deve envolver:
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Avaliação psicológica e neuropsicológica completa, para investigar sintomas psíquicos subjacentes;
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Triagem médica e exames laboratoriais regulares, incluindo testes de função hepática, renal, infecciosa e metabólica;
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Encaminhamento para psiquiatria e infectologia, quando necessário;
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Psicoterapia individual, com foco em manejo emocional, reconstrução de vínculos e motivação para mudanças;
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Atenção ao ambiente familiar e social, promovendo apoio contínuo e reinserção saudável.
A combinação de psicoeducação, escuta acolhedora, vigilância clínica e projetos de vida realistas é essencial para promover adesão ao tratamento e melhoria da qualidade de vida.
5. Prevenção e Ações de Conscientização
A prevenção do agravamento das doenças ocultas exige ações em dois níveis:
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Educação em saúde, que ensine os efeitos a longo prazo do uso de substâncias e incentive o cuidado integral do corpo e da mente;
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Atenção primária e comunitária, com triagens regulares em contextos vulneráveis, como escolas, comunidades e abrigos.
A construção de uma rede de apoio protetora é fundamental para que o indivíduo se sinta acolhido e motivado a buscar ajuda.
Conclusão
As complicações do uso de drogas não se restringem aos danos evidentes. Doenças ocultas — silenciosas, subdiagnosticadas ou encobertas — aumentam o sofrimento psíquico e físico de maneira significativa e agravam o risco de morte precoce, cronificação da dependência e exclusão social. A atuação clínica precisa ser abrangente, empática e investigativa, buscando não apenas tratar o uso de substâncias, mas compreender o indivíduo em sua totalidade. Só assim será possível promover um processo terapêutico eficaz, sustentável e transformador.
Referências
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American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Artmed.
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Volkow, N. D., Koob, G. F., & McLellan, A. T. (2016). Neurobiologic Advances from the Brain Disease Model of Addiction. New England Journal of Medicine, 374(4), 363–371.
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UNODC. (2023). World Drug Report. United Nations Office on Drugs and Crime.
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Marlatt, G. A., & Witkiewitz, K. (2010). Relapse Prevention: Maintenance Strategies in the Treatment of Addictive Behaviors. Guilford Press.
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NIDA. (2020). Comorbidity: Substance Use and Other Mental Disorders. National Institute on Drug Abuse.